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10/02/2024

A psicologia matemática e a modelagem das ditaduras das minorias

Sumário

  1. Introdução
  2. Regras locais, propriedades globais
  3. Escalas, grupo de renormalização e transição de fase
  4. Os modelos
  5. Resultados preliminares
  6. Próximos passos

1. Introdução

O nível de circularidade das minhas leituras é respeitável. Tenho ciclos de, mais ou menos, cinco anos para reencontrar a obra cuja citação me deixou pasmo no passado. Dificilmente entendo a questão no primeiro contato, então faço o que toda pessoa razoável deve fazer frente a algo que não domina: abandono para retomar, quem sabe, em melhores condições no futuro.

A impressão de que os reencontros acontecem em torno de cinco anos começou com o ingresso no mestrado. Muitas fichas do primeiro ano (2005) só caíram no primeiro ano do doutorado (2010). Encontrei discussões na época em que desenvolvi o openEvoc (2012-2013) que só retomei durante o pós-doutorado (2018). O último bumerangue da saga acabou de voltar, trazendo uma excelente leitura do início de 2020: Skin in the game, de Nassim Nicholas Taleb (2018). Lembro de ter lido o livro do começo ao fim praticamente sem intercalar com mais nada e publiquei uma resenha elogiosa no @bibliofiloaprendiz.

A leitura não foi exatamente difícil, apesar de o repertório de Taleb ser trabalhoso para acompanhar. Se você, como eu, tem a péssima mania de não ignorar nenhuma nota de rodapé ou nome novo, os textos dele são um prato cheio. O terceiro “livro” do volume, The Great Assimetry (“A grande assimetria”), está diretamente relacionado a meus interesses atuais na psicologia matemática, psicologia social computacional e modelagem de processos cognitivos – veja este projeto para exemplos.

Skin in the game (2018).

Parece que gostei bastante da discussão na época, considerando a quantidade de marcações que fiz nos tópicos do capítulo. Contudo, minhas tentativas de aprofundar as citações e referências não foram muito longe. Dei mais atenção ao tema geral de “colocar o seu na reta”, tradução “brasileira” mais apropriada que “arriscando a própria pele”.

O “domínio da minoria teimosa” ou a “ditadura da minoria”, que figura no capítulo dois de Skin in the game, está entre os modelos da sociofísica que estou estudando no projeto de pesquisa Psicologia Social Computacional: Modelagem e Simulação. A explicação cuidadosa do que é sociofísica, ou física social, ou ciência social computacional, ou seus muitos outros nomes, ficará para outro texto.

Por ora basta apontar que, assim como temos pessoas da psicologia, biologia e economia incorporando matemática e computação desde os anos 1950 às suas técnicas de modelagem, a física entrou em cena, com os mesmos objetivos, no final da década de 1970. Há razoável coincidência de interesses, vocabulário e técnicas entre a sociofísica e os estudos da complexidade, que atravessam biologia, psicologia e ciências sociais. A modelagem baseada em agentes compartilha pressupostos e escolas com a física estatística, florescendo em instituições interdisciplinares como o Santa Fe Institute (SFI).

De volta ao livro, Taleb citou o trabalho do físico francês Serge Galam, um dos pais da “nova” sociofísica e que ficou famoso pelas previsões da vitória de Donald Trump em 2016, quando ninguém acreditava que seria possível. Na minha leitura de 2020, o nome de Galam passou batido como mais um dentre os muitos casos anedóticos de Taleb, envolvendo amigos do mercado financeiro e intelectuais boa-vida. A “ditadura da minoria”, na mecânica estatística, está relacionada aos conceitos de grupo de renormalização, invariância de escala e transição de fase, desenvolvidos por gente grande como os laureados pelo Nobel de Física Ken Wilson e Murray Gell-Mann (este último, um dos fundadores do SFI).

The Trump Phenomenon: a Sociophysics View (2016)

Assim como nos episódios do podcast Psicologia Matemática, solicito a você, caro leitor, um pouco de fé e paciência para entender os conceitos a seguir. Eu também tenho apenas intuições gerais sobre eles e ainda não consigo realizar as derivações e provas algébricas. Ao mesmo tempo, é importante frisar que a sociofísica não os utiliza de modo metafórico ou “elástico” (como na maldição de Sokal), de maneira que as implementações ao final do texto podem ajudar a reduzir o entendimento precário das formalizações matemáticas envolvidas.

2. Regras locais, propriedades globais

O argumento de que uma minoria estridente pode ser suficiente para mudar o comportamento da maioria é explicada por Taleb de diversas formas. A ilustração mais simples do capítulo corresponde a uma família de quatro pessoas, inicialmente sem restrições alimentares, mas cuja filha adolescente decide banir de uma vez por todas os alimentos transgênicos de sua dieta. A posição intransigente da filha levaria os demais membros a adotarem a alimentação baseada em orgânicos, afetando a família inteira.

A família avessa a transgênicos, ao ser convidada para eventos sociais por vizinhos e amigos, arrasta seus hábitos alimentares. Assim, a comunidade no entorno da família também passa a evitar transgênicos em seus encontros e os mercados locais ampliam a oferta de orgânicos. A mudança dos hábitos alimentares da residência, seguida pelo bairro, depois pela cidade, pelo país e pelo mundo teriam seu início na conduta intransigente de uma minoria persistente. Taleb sugere que uma pequena parcela, formada por cerca de 5% da população, seria capaz de tais façanhas. Ele não explica a origem da estimativa, então é outra oportunidade para explorar no modelo.

Não há nada de revolucionário nas tensões entre maiorias e minorias, bem conhecidas pelos estudiosos da psicologia social. O ponto mais importante da adesão da maioria ao comportamento da minoria, no exemplo, é que pessoas que comem transgênicos não têm problemas em comer alimentos orgânicos, mas o inverso não é verdade. Taleb olha para o mercado e para os costumes ao mesmo tempo, cumprindo a tarefa necessária e difícil de explicitar o óbvio. Regras muito duras, sejam alimentares, religiosas ou políticas, quando não representam disrupções radicais para a vida daqueles que ainda não as seguem, têm potencial de serem adotadas, desde que a posição dos já convertidos seja inegociável.

Nas modinhas recentes dos supermercados brasileiros, ocorrem fenômenos similares com produtos sem lactose, sem glúten e veganos, que são consumidos mesmo por quem não tem tais restrições. Os preços e a oferta desses produtos estão cada vez mais próximos dos tradicionais, ao mesmo tempo em que há cada vez mais gente descobrindo restrições alimentares no nosso entorno.

Retornando à família, seus membros são modelados como agentes governados por regras simples (comer ou não comer transgênicos) e as consequências locais ou microscópicas das interações entre esses agentes têm consequências macroscópicas, isto é, no conjunto. Se tomarmos a família como uma unidade microscópica de um nível mais elevado da organização social que os indivíduos, as interações entre as famílias têm consequências no nível da vizinhança, a vizinhança no nível bairro, o bairro no nível da cidade e assim por diante.

Taleb representa a mudança de comportamento da família para o bairro, passando pela vizinhança, com uma estrutura fractal: quatro pessoas compõem a família, enquanto quatro famílias constituem a vizinhança e quatro vizinhanças formam o bairro. A conversão para o hábito de não ingerir transgênicos ocorre em uma das quatro células familiares, em seguida a família é convertida. No nível da vizinhança, a família convertida é uma das quatro unidades que converterá as demais, ao passo que no nível do bairro, a vizinhança é uma das quatro unidades que iniciará a mudança.

Duas fases da ditadura da minoria. (1) No primeiro quadro, a família representada pelo quadrado de contorno verde, seus quatro membros em contorno vermelho, preenchimento branco e a filha adolescente preenchida em amarelo. A vizinhança, representada pelo quadrado azul, é composta por quatro quadrados verdes, das famílias. O bairro, em magenta, é composto pelas quatro vizinhanças em azul. A representação fractal da cidade permite visualizar adolescentes aversos a transgênicos nas famílias mais ao alto e à esquerda de todos os bairros. (2) A influência no interior das famílias causa a conversão completa do grupo, que na sequência se espalha para as vizinhanças e para os bairros, até que a cidade esteja totalmente convertida. A diferença entre assumir quatro ou 100 unidades em cada nível é computacional (tratabilidade), embora os princípios sejam os mesmos.

Essas mudanças são propriedades emergentes do sistema no nível em que o observamos e que não se reduzem às condutas de suas unidades constituintes. Em outros termos, a sociofísica coincide com a psicologia social e com propriedades conhecidas dos autômatos celulares, ao argumentar que não é possível explicar o comportamento observado do grupo (a família) recorrendo apenas às condutas individuais de seus integrantes (a adolescente teimosa e seus familiares).

Finalmente, além das interações locais, este esquema ainda pressupõe autonomia e independência entre os agentes. Isto significa que os agentes são governados apenas por suas regras (auto = próprio; nomos = leis, regras), sem determinismos externos, seja de outros agentes ou de eventos ambientais. O que ocorre é que cada agente, enquanto persegue seus objetivos (p.ex., não comer transgênicos), compensa perturbações oriundas do meio ou causadas por outros agentes (se recusar a frequentar locais e eventos em que os alimentos servidos sejam transgênicos, fazer greve de fome para pressionar os pais etc.).

3. Escalas, grupo de renormalização e transição de fase

A concepção fractal dos níveis tem relação com o modo como esses sistemas são formalizados. Trata-se todos os níveis como se fossem similares, o que é naturalmente uma abstração das propriedades irrelevantes do fenômeno estudado – grupo de renormalização. A invariância de escala tem benefícios para a formalização matemática, uma vez que tratar todos os níveis aproximadamente do mesmo modo reduz a quantidade de variáveis consideradas e computações a serem feitas. Na ilustração acima, a cidade é representada do mesmo modo que a família: quatro unidades constituintes (os membros e os bairros), cujas interações (comer ou não transgênicos dentro de casa ou na região) trazem à tona aquilo que observamos enquanto “unidade” (famílias ou cidades livres de transgênicos).

Podemos ser mais específicos ao descrever as interações entre as unidades em cada nível. Como os agentes interagem localmente, pode-se adotar diferentes algoritmos para capturar as perturbações da vizinhança em cada entidade. Como estamos abstraindo muitas propriedades relevantes do fenômeno real, corremos o risco de perder aspectos qualitativos da dinâmica dos encontros entre as pessoas. Se as unidades forem modeladas como entidades estáticas sobre uma malha bidimensional reticulada, só haverá interações com o entorno imediato, o que pode ser uma simplificação exagerada das condutas humanas. Se, por outro lado, os agentes puderem se movimentar em espaços bidimensionais de modo aleatório, as chances de seus encontros são aproximações da dinâmica social: a adolescente intransigente frequenta a escola, se diverte com os amigos e vai às compras, tendo oportunidades de ser contra os transgênicos por todo lugar.

Taleb nos lembra que a estrutura espacial importa, pois se os intransigentes vivessem em guetos, sem interação com outros grupos, a ditadura da minoria não funcionaria como descrito. O autor defende que a maioria se curva à intransigência se a distribuição da minoria for similar nas diferentes escalas (família, vizinhança, bairro, cidade), sem desconsiderar a contribuição da estrutura de custos: a conduta intransigente não pode ser mais cara que a alternativa vigente, a menos que o fenômeno ocorra entre grupos e vizinhanças de alto poder aquisitivo. Como citei anteriormente, a economia de escala apoia a conversão.

Neste texto, é suficiente assumir a malha estática com interações locais. Isso se deve, principalmente, à suposição de invariância de escala, pois se as famílias devem se parecer com a cidade, os dois níveis não compartilham a capacidade de deslocamento no espaço. Na proposta de Serge Galam, não buscamos o que há de comum entre as escalas citadas (não há nada), mas tentamos identificar o que há de comum nos processos de passagem do elemento para o conjunto em qualquer escala: de átomos, indivíduos, famílias, bairros, vizinhanças e cidades para as respectivas coleções dessas entidades. Há outra razão, que nada tem a ver com Taleb ou com a sociofísica, e que corresponde às implementações dos modelos que fiz utilizando NetLogo. Retomaremos o tema mais adiante.

Assumindo a malha estática, temos dois tipos de regramento das interações. A vizinhança de Von Neumann, introduzida pelo importante cientista da computação deixado de fora de Oppenheimer, adota quatro vizinhos imediatos como base para calcular o estado de cada agente: superior, à direita, inferior e à esquerda. A vizinhança de Moore, pioneiro dos autômatos celulares, inclui os oito vizinhos imediatos, acrescentando aos de Von Neumann aqueles situados à noroeste, nordeste, sudeste e sudoeste do agente sob análise.

As vizinhanças de (John) Von Neumann e (Edward F.) Moore. O quadrado central consiste no agente cuja influência do entorno será computada.

Com a escolha do regramento de vizinhança, o modelo do fenômeno simula gerações de interações entre os agentes no tempo, computando a influência entre eles e fazendo com que a preferência das minorias e maiorias dispute o espaço na “sociedade”. A simulação pode ter parâmetros que afetam sua execução, tais como a proporção de intransigentes na população (lembre dos 5% indicados por Taleb), o algoritmo de vizinhança para se calcular a influência no grupo e o tamanho da minoria, em cada grupo, que seria suficiente para impor suas preferências.

A execução da simulação, centenas ou milhares de vezes pelo computador, permite ao modelador investigar os “pontos críticos”, ou seja, os valores dos parâmetros em que o modelo faz a transição de fase de um estado para outro. A transição de fase é abrupta e reorganiza o sistema radicalmente, como na mudança de estado da água de líquido para gasoso no ponto de ebulição. Em sua excelente introdução não técnica ao tema, Philip Ball explica que físicos investigam a universalidade dos processos de transição de fase, que ocorreriam em toda a natureza, independente dos detalhes específicos de cada sistema. O argumento de Ball, e da sociofísica de Galam, é que a dinâmica social também estaria sujeita à universalidade dos fenômenos naturais. No nosso contexto, estou interessado nas propriedades do ponto em que a vontade da minoria se impõe à da maioria e a simulação se torna a “ditadura” dos primeiros, sem defender sua universalidade.

Na modelagem baseada em agentes, é uma prática recomendada iniciar o modelo pela situação aleatória, em que tudo que acontece se deve ao acaso. Por exemplo, a conversão alimentar do agente pode ocorrer se um número real aleatório sorteado entre 0 e 1 ultrapassar o limiar de 0,5, nada tendo a ver com seus vizinhos. Em seguida, o mecanismo hipotético que tenta representar a dinâmica do fenômeno simulado é implementado e avalia-se a existência de diferenças em relação à situação aleatória anterior, explorando-se o espaço de parâmetros (número de intransigentes, tipo de vizinhança etc.). No nosso caso, o mecanismo de influência foi descrito verbalmente por Taleb e o desafio é formalizá-lo nos termos do programa NetLogo.

4. Os modelos

Por meio de aproximações sucessivas, estou construindo modelos baseados em diferentes suposições sobre a “ditadura da minoria” utilizando NetLogo. Este é um ambiente gratuito e de código aberto desenvolvido no Center for Connected Learning (CCL) da Northwestern University (EUA). Escrevi uma breve introdução, para psicólogos, ao ambiente e à linguagem no capítulo do livro Temas Atuais em Desenvolvimento Humano (2022).

Interface de NetLogo com uma das primeiras versões do modelo.

Existem protocolos para a descrição cuidadosa do modelo, que facilitam sua discussão e replicação por outros pesquisadores. Não utilizarei o principal deles (ODD) aqui, mas você pode visualizar seu aspecto geral no repositório do For/ma. Dado o caráter informal (apesar de extenso) deste texto, me parece satisfatório explicitar minhas suposições, parâmetros escolhidos e discutir suas consequências lógicas a partir dos resultados das simulações.

Definição de minoria e maioria: o modelo considera que a minoria é um subconjunto da população de agentes da simulação. A proporção representada pela minoria é um dos parâmetros que pode ser definido como condição inicial da simulação, permitindo explorar, por exemplo, o argumento de Taleb quanto à suficiência de 5% para a emergência da ditadura. Os dois grupos são representados em cores distintas no modelo e nas versões mais recentes incluem variáveis de estado que indicam a relação de pertinência (1: minoria, 0: maioria). A população é representada como agentes ou patches, de acordo com a dinâmica de mobilidade (ver abaixo).

Dinâmica de influência da minoria: a descrição verbal do caso da família sugere que, no âmbito de um grupo, basta que um (1) de seus integrantes intransigentes defina suas posições em relação a um tema para que os demais sejam pressionados a acompanhá-lo. Defini a quantidade mínima de intransigentes necessários para influenciar o grupo como um parâmetro de valor inteiro mínimo 1 e máximo 4 ou 8 (conforme regra de vizinhança). A influência se desenrola no tempo (iterações ou ticks de NetLogo) e no espaço (sobre a malha ou ambiente).

Dinâmica da influência da maioria: Taleb não discute especificamente como a maioria se comportaria para conter a minoria, embora a “regra da maioria” seja intuitiva. Considerando um grupo de tamanho N em torno do agente, este seria influenciado pela preferência da maioria se ao menos (N/2)+1 membros do grupo coincidirem na opção. Adotei dois parâmetros, sendo um número inteiro no intervalo [1,8] para controlar o limiar da maioria, e outro número real no intervalo [0,1] referente à probabilidade de a preferência da maioria ser acatada pelo agente. Esta influência igualmente se desenrola no tempo e no espaço.

Cálculo da influência: as vizinhanças de Von Neumann (4) e Moore (8) são configurações do modelo, alterando a quantidade de agentes no entorno que são considerados no cálculo das influências da minoria.

Mobilidade dos agentes: testei agentes estáticos sobre a malha bidimensional e agentes com liberdade de movimento (aleatório) sobre o espaço bidimensional. No caso dos agentes estáticos, NetLogo os representa como retalhos quadrados (patches), como se fossem o “solo” do ambiente, adotando lógica similar à dos autômatos celulares. Quanto aos agentes em movimento, NetLogo tem a entidade “agente” propriamente dita, que se desloca de modo aleatório sobre o ambiente, encontrando outros agentes e realizando as computações acima.

Três implementações da mobilidade: 1) População de 225 agentes estáticos na malha fixa de 15x15, com a maioria representada em vermelho e a minoria em azul. 2) População de 100 agentes móveis, com mesma codificação de cores e indicação (em cinza) da vizinhança de Von Neumann da última influência computada. 3) População de 10.000 agentes, com programação inspirada em autômatos celulares. A tonalidade mais escura de azul consiste na maioria e a mais clara na minoria.

NetLogo ainda oferece saídas gráficas e no formato de planilhas para monitoramento e análise da dinâmica da simulação. Para este texto, farei análises sobre o conjunto das simulações, sem comparações entre os resultados segundo a variação dos parâmetros.

5. Resultados preliminares

Os leitores matematicamente inclinados já devem ter percebido que os limites impostos ao crescimento da vontade da minoria, na descrição de Taleb, são muito generosos. Se basta um (1) intransigente na vizinhança do agente para operar a conversão, sempre que houver um integrante da minoria por perto, haverá potencialmente mais quatro (4) conversões (tempo t). E estes quatro produzirão mais oito (8) em t+1, acelerando a velocidade da conversão progressivamente.

Dois momentos da simulação (t e t+1) em que a dinâmica da influência sem limites é evidenciada: um único agente intransigente (no tom mais claro de azul) afeta ao menos quatro vizinhos (tom intermediário), sem afetar o restante da maioria circundante (tom mais escuro). Na iteração seguinte, os quatro novos agentes convertidos estão na vizinhança de mais oito (8) agentes da maioria. A curva do gráfico mostra a distribuição dos agentes nos dois grupos após oito iterações.

A observação da curva azul, aproximadamente sigmoide no gráfico, aponta que o modelo gera o crescimento da minoria, desacelerando à medida em que a minoria se torna a maioria. Funções logísticas, que têm formato sigmoide, são utilizadas em modelos populacionais da ecologia e biologia, então estamos no universo de comportamentos matemáticos conhecidos.

A variação do número de intransigentes necessários na vizinhança para operar a conversão reforça o entendimento de que limites mais realistas podem conter a expansão indiscriminada da minoria. Na simulação com 1% de intransigentes na população, exigir dois deles nas vizinhanças de Von Neumann e Moore parece impedir a conversão sem controle.

Primeiro modelo NetLogo.

Quando há integrantes da minoria próximos, a exigência de dois deles produz crescimento limitado a um cluster (00:47 do vídeo), o que não acontece quando aqueles agentes estão isolados. A densidade da minoria na malha importa, o que nos lembra o comentário de Taleb sobre a importância distribuição espacial. Em torno de 01:08 do vídeo, podemos observar dois agentes da minoria muito próximos que causam a conversão completa pela vizinhança de Moore. Ao aumentar o percentual de intolerantes na população (01:25) para 20%, ampliamos a presença deles na malha e favorecemos a formação dos clusters.

Segundo modelo NetLogo.

No segundo modelo, em que os agentes podem se mover livremente, o comportamento emergente é basicamente o mesmo: crescimento sem limites com as exigências generosas de um (1) intolerante, partindo de 5% de proporção da minoria na população. O aumento na exigência contém a conversão. O gráfico deste modelo é ligeiramente diferente, em razão da resolução das iterações. No primeiro, lidamos com oito (8) iterações da simulação, enquanto o segundo passa das 10.000. A curva de distribuição dos grupos, sem os detalhes, é semelhante à anterior.

Em torno de 00:30, o aumento da minoria para 21% da população, combinado à exigência de dois intolerantes para a conversão, desacelera a dinâmica de crescimento. O gráfico mostra as flutuações entre os grupos, com a inversão da maioria apenas após 10.500 iterações e a resistência do último agente vermelho por mais 10 mil iterações.

Outra melhoria com resultados interessantes diz respeito à introdução ao ajuste no limiar da “regra da maioria”, a saber, a quantidade de agentes na vizinhança necessários para “desconverter” o intolerante. A maioria simples em Von Neumann seriam três (3) agentes, o que impõe capacidades desiguais de convencimento entre os dois grupos. A possibilidade de ajustar a maioria da vizinhança para um (1) agente contém a expansão dos intolerantes.

No terceiro vídeo, defini a distribuição igual entre os dois grupos (50%) nas condições iniciais e ajustei as exigências de conversão de ambos para a presença um (1) agente na vizinhança de Von Neumann. Estes parâmetros criaram a primeira situação menos desigual desta implementação, em que a maioria flexível consegue conter o crescimento da minoria intolerante e, eventualmente, recompor sua parcela majoritária da população.

Segundo modelo com variação nos parâmetros.

Estes parâmetros parecem endossar o bom funcionamento do modelo, uma vez que os dois grupos têm as mesmas oportunidades de cooptar os agentes no ambiente. A situação só se modifica se a chave “intolerantes extremos” da interface estiver ativa, como pode ser visto aos 01:53 do vídeo. O que essa chave faz é impedir a “desconversão” de um agente após sua adesão à minoria, gerando uma população de extremistas. Conhecemos bem este tipo de fenômeno na política do século XXI e ele recupera a expansão descontrolada da minoria. Dinâmicas que persistiram por 20 mil interações, considerando a possibilidade de reverter pertencimentos, foram concluídas a menos de 10% disso.

A terceira implementação, inspirada por autômatos celulares, é a mais flexível quanto aos ajustes dos parâmetros. Podemos ter até 10.000 agentes sobre a malha fixa e a possibilidade de definir a probabilidade de conversão dos agentes entre os grupos, além de todos os controles anteriores (exceto a seleção da vizinhança de Moore, por enquanto). A malha fixa é melhor opção aos agentes em movimento pela possibilidade de visualizar as relações entre quantidades enormes de agentes. A animação de milhares de avatares sobre a tela é confusa e impede a detecção de padrões relevantes.

Terceiro modelo NetLogo.

Visualmente, é o modelo mais interessante. A quantidade elevada de agentes produz padrões de agrupamento mais orgânicos e permite acompanhar as “pulsações” das conversões e desconversões entre os grupos. O código é o mais elegante, organizado e curto até o momento, pois aproveitei tudo que funcionou e o que poderia ser aprimorado das versões anteriores.

O vídeo começa pela simulação equivalente às produzidas pelos modelos anteriores: 5% de intolerantes na população; exigência de um (1) intolerante na vizinhança e de maioria simples entre os flexíveis para conversão; chave dos intolerantes extremos desativada e probabilidade de conversão em 100%. Este último parâmetro tenta aprimorar a conversão introduzindo a chance de que, mesmo na presença das vizinhanças suficientes, o agente pode permanecer no grupo em que está. Como nas versões anteriores este parâmetro não existia, na prática ele estava em 100%.

Aos 00:23, pode-se observar as consequências do aumento da exigência para dois (2) intolerantes, o que cria uma situação nova: a formação de clusters isolados da minoria, como se fossem “guetos”. Pelos parâmetros de conversão da maioria, estes agentes intolerantes não conseguem se expandir a menos que encontrem outros clusters vizinhos, como vimos nos modelos anteriores. Isso muda aos 00:42, quando aumento a proporção da minoria para 20%, o que retoma o seu crescimento, porém em pulsações mais nítidas, como se fosse uma inundação gradual. A curva no gráfico desacelera e muda de comportamento após crescimento abrupto.

A redução da exigência da regra da maioria para dois (2) volta a conter a minoria (01:14) e a gerar clusters até que os flexíveis se impõem na população. O formato do gráfico parece com o anterior, com a diferença de que as duas curvas não se encontram. Em seguida (01:35), a repetição do teste com proporções iguais na população (50%) e mesmas regras de conversão (2) dá vantagem à minoria.

Para concluir as demonstrações, o parâmetro novo desta implementação, referente à probabilidade de conversão (01:53), foi definido em 20%, o que significa uma chance em cinco de cooptação do agente conforme o estado de sua vizinhança. Essa probabilidade é genérica e poderia representar diferentes restrições para a adesão ao comportamento da minoria (custos, desconfiança, entre outros), o que iniciaria a aproximação do modelo a processos de escolha e tomada de decisão mais realistas.

Mantendo-se as configurações anteriores (50% para cada grupo e exigência de dois agentes na vizinhança para conversão), a introdução da probabilidade de conversão gera uma dinâmica possivelmente metaestável, como exibido no vídeo a seguir.

Terceiro modelo com possível metaestabilidade.

A distribuição sobre a malha produz dois clusters cujos limites oscilam, evidenciando as zonas de tensão entre os grupos, sem que a estrutura geral se altere. Sistemas metaestáveis permanecem neste estado por longos períodos, sem transitar para estados mais estáveis (como a “ditadura da minoria”), a menos que haja intervenções, internas ou externas. As curvas praticamente horizontais e estáveis do gráfico ajudam a subsidiar a inferência da metaestabilidade.

6. Próximos passos

Pretendo analisar os dados em busca dos parâmetros que geram dinâmicas recorrentes, sejam elas na direção da instauração de “ditaduras das minorias”, seja no entendimento das condições que produzem dinâmicas metaestáveis, como a do último vídeo. É fundamental compreender por que aquelas configurações surgem e como cada parâmetro as afetam.

Esses achados integram meus esforços de desenvolvimento do modelo sobre o fenômeno das Representações Sociais. As explorações apresentadas ainda requerem a confrontação com dados empíricos, de modo a avaliar a eficácia do modelo. Não se trata de impor a validação empírica em detrimento do raciocínio analítico, e sim de aproveitar as consequências lógicas do modelo para além das anedotas de textos como o de Taleb.

Os códigos-fonte dos modelos NetLogo apresentados serão os temas de futuros textos do blog, o que poderá servir como introdução à programação para os curiosos. A linguagem é espetacular e melhora substancialmente com o tempo.

Estou sempre em busca de candidatos a orientandos, de graduação e pós-graduação, interessados por este tipo de investigação. Se este for o seu caso, mande um alô.

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