Livrarias de aeroporto
Não me lembro com quem aprendi a expressão “livraria de aeroporto”, descrição precisa de nove em cada dez livrarias atuais. Assumo que roubei a ideia para poder escrever sobre mais este efeito colateral do mundo globalizado.
Eu lembro com saudades dos meados dos anos 1990, quando a Web era mato e estávamos atordoados com o aumento espetacular de acesso à informação. Sites de referência pioneiros, servidores de FTP de livre acesso e listas de discussão pareciam resolver todos os meus problemas de aprendizagem tecnológica da época.
Cresci em Vitória, capital do Espírito Santo. O capixaba tem dificuldades para lidar com tradições, então são raras as coisas que persistem por anos ou décadas. Isso vale para pontos de ônibus, restaurantes, escolas, políticas públicas e livrarias. Destas, as mais duradouras foram grandes redes nacionais instaladas em shopping centers, mais parecidas com papelarias para a geração Z que com estabelecimentos que comercializam livros. Apesar de ser uma das capitais do sudeste, Vitória não se comparava e ainda não se compara aos outros grandes centros da região quanto à oferta de atividades culturais. Não sei o que teria sido de mim, seja no final do ensino médio, graduação ou pós-graduação, sem a Internet para compensar as estantes raquíticas das livrarias locais.
Alguém pode argumentar que se as estantes do Espírito Santo são pobres, ao menos oferecem as novidades. Como os nascidos entre o Rio, as Minas e a Bahia adoram novidades, o desafio seria encontrar os clássicos, títulos chamados de “fundo de catálogo” pelos livreiros. De fato, isso valeu no final dos anos 1990 e continua valendo hoje. Ninguém pode acusar as livrarias locais de ignorarem os campeões de vendas em autoajuda, negócios, inovação ou qualquer tema que esteja em voga. Minha mãe era devoradora de livros de ficção e sempre voltava de seus passeios pelas livrarias com um ou mais lançamentos para ler.
Em contrapartida, se o seu interesse era suficientemente raro a ponto de surpreender os poucos livreiros experientes da cidade, a alternativa na virada do século passado era recorrer aos preços de capa e fretes em dólar. Tudo isso sem ignorar que a novidade poderia ser nova apenas para você, o que exigia escavações difíceis mesmo em acervos de gigantes como a Amazon.
Naqueles tempos de Internet por linha discada, minha expectativa ingênua era que o acesso à rede transformaria as livrarias locais, ajudando a diversificar o acervo, trazendo raridades e novidades de nicho para malucos como eu. Afinal, até os livreiros de cidades pequenas como Vitória poderiam utilizar a Internet para engordar suas estantes, certo?
A expressão “livraria de aeroporto” denota o que praticamente todas as livrarias parecem ter se tornado, pós-Internet: mais uma instância da concentração das mídias, da reprodução de padrões globalizados e globalizantes, fazendo com que nos sintamos em casa em todos os lugares, independente das questões locais. Alguém já denunciou condição semelhante das cafeterias, refúgio preferido dos nômades digitais. Pode-se pedir café latte acompanhado de croissant, Wi-Fi grátis e trabalho precarizado no planeta inteiro.
Não conheço o mundo todo e só posso falar das livrarias das cidades que visitei (estes espaços são parte indispensável dos meus roteiros) e pelos relatos que recebo dos amigos que também praticam o esporte. Dependendo da cidade (p.ex., Vitória) o conceito se aplica a todas as lojas do ramo, incluindo parte importante dos sebos.
Uma livraria de aeroporto destaca a tradução para o idioma local dos livros mais vendidos e mais sem vergonha do mercado editorial terráqueo. Hábitos atômicos, às vezes quânticos, poderes e leis que governam casamentos, empresas e o cosmos, estratégias infalíveis de algum bicho ou figura bíblica, regras para a vida e para a morte. Em tese, para visitar livrarias de aeroporto, você precisaria estar em um. O momento ideal seria a estadia na sala de embarque, onde há pouco para se fazer, cafeterias globalizadas com pães de queijo obscenamente caros e cadeiras desconfortáveis. Você espia a vitrine, identifica o título e o lide com a redação perfeita para enfrentar o tédio pelas próximas horas (esses livros chamariam isso de “proposta de valor”) e paga um preço ligeiramente mais elevado, mas não muito diferente, das demais livrarias.
Não sei dizer se essas livrarias são bem-sucedidas. Há franquias que estão presentes nos principais aeroportos brasileiros e conheço encarnações similares em outros países. Sendo sincero, já comprei livros e revistas de qualidade duvidosa mais de uma vez nessas lojas e nunca acho demais ter livrarias por perto. Meu problema é com a exportação deste modelo para as livrarias que funcionam em espaços não controlados pela Aeronáutica e visitados por pessoas que não estão entediadas.
Uma das evidências deste movimento é a abertura de livrarias tradicionais de shoppings em aeroportos, com pouca ou nenhuma modificação da estrutura e organização das lojas. É claro que o acervo disponível no salão de embarque é menor que no shopping, mas isto apenas explicita que o modelo aeroportuário venceu. As recomendações da casa, títulos mais vendidos e promoções da semana são exatamente as mesmas das lojas de outras praças de qualquer lugar do mundo, sem estranhamentos para quem visita um espaço ou o outro.
Não podemos ignorar as relações complexas entre as editoras, cada vez mais globais, o mercado de direitos autorais e as grandes redes de livrarias, que também contribuem para a homogeneização das vitrines e estantes. Na Internet do século XXI, as editoras não podem simplesmente comprar os direitos e traduzir a obra para o idioma de seu país de origem. O autor aparece em publicações no Instagram, participa de podcasts, vem ao país para palestras e entrevistas nos meios de comunicação tradicionais e marca presença em eventos empresariais, tudo antes de estar disponível no shopping center ou na sala de embarque.
Nesse sistema sofisticado para entreter as pessoas, interesses de nicho têm pouco espaço. Encontramos Sêneca em cada livraria do planeta porque o estoicismo está na ponta da língua, ou no topo das publicações das redes. O difícil é esbarrar com filosofias fora de moda, autores áridos para se enfrentar em poucos minutos e títulos que dependem de editoras pequenas ou independentes para circularem.
O aspecto positivo da consolidação do modelo de livraria de aeroporto é o incentivo acidental às livrarias especializadas. Quem gosta de livros estabelece relações de dependência emocional com livrarias que se levam à sério. Se, por um lado, cada cidade que visito me permite tomar um café latte com James Clear, por outro descubro livrarias cada vez mais de nicho e que fazem questão de dar trabalho aos seus frequentadores. Os preços podem ser mais elevados, mas haverá conhecimento legítimo sobre as estantes, receberemos indicações pertinentes e gastaremos muito mais tempo para desbravar o acervo do que aquele da espera pelo embarque. Na minha lista de descobertas imperdíveis estão a Librería Guadalquivir (Buenos Aires), Livraria Jenipapo (Belo Horizonte) e Clarke’s Bookshop (Cidade do Cabo).
Tenho carinho especial pela Martins Fontes Paulista (São Paulo), uma aula sobre como sobreviver no mercado literário brasileiro (vale escutar o podcast), pela Puro Verso (Montevidéu) e pelo Fondo de Cultura Económica (vários pontos da América Latina). Estas são provas de que é possível manter acervos colossais sem vender a alma e fazendo com que bibliófilos precisem se adaptar às regras da casa, pois são visitas e estão de passagem.