UY
Tive a oportunidade e o privilégio de passar uma semana inteira trabalhando em parceria e acompanhando o cotidiano de colegas pesquisadoras da Universidad de la República – Udelar (Montevidéu, Uruguai). Oferecemos, de 02 a 06 de setembro, um curso de métodos e técnicas qualitativas de pesquisa com ênfase na abordagem estrutural da Teoria das Representações Sociais. Fui recebido pelas professoras doutoras Alejandra Girona, Lucía de Pena, Claudia Morosi e uma turma de cerca de 30 pesquisadores que atuam em diversas escolas e faculdades da Udelar – Nutrição, Enfermagem, Serviço Social, Ciências Sociais, Psicomotricidade, entre outras.
Pretendo detalhar e disponibilizar o conteúdo do curso em textos futuros do blog, especialmente porque a oportunidade foi o lançamento da nova versão do openEvoc (1.1, carinhosamente batizada de “Montevideo”). Nesta publicação, gostaria de compartilhar o choque de realidade que minhas colegas uruguaias me ofereceram quanto à visão de universidade pública que existe no país vizinho.
O modelo que descrevo não está isento de problemas, dificuldades e críticas. As colegas da Udelar e seus companheiros de instituição me apresentaram o cenário com prós e contras pessoalmente, e fiz questão de lhes contar como as coisas funcionam no Brasil para ouvir o que pensam. Não conheço a situação das instituições particulares do Uruguai, tampouco abordamos as diferenças entre elas e a Udelar em nossas conversas. Mesmo assim, houve concordâncias de que a situação das faculdades privadas deve ser igual ou pior do que a que eles vivenciam, como ocorre no contexto brasileiro.
Ingressantes
Durante o período de isolamento social na pandemia de Covid-19 (2020-2021), tive experiências difíceis no ensino remoto, tais como turmas com 60 a 100 estudantes em salas do Google Meet e falta de apoio institucional (especialmente governamental) para enfrentar as barreiras didáticas – equipamentos, treinamento, suporte etc. O Curso de Design da Ufes recebe 60 ingressantes por ano, sendo 30 por semestre. A ocupação média das nossas turmas oscila entre 20 e 40 estudantes, com alguns poucos casos extremos de tranquilidade (10-15 vagas) e de desespero (40-50). Assim, os encargos do ensino remoto foram muito acima do normal e não deixaram saudades.
Para se ter uma ideia mais ampla sobre a oferta de vagas na Ufes, os cursos de Medicina ofertam 80 vagas anuais, enquanto Psicologia oferta 60 vagas anuais. É difícil entender se estes números são suficientes para a realidade do ES, considerando a população aproximada de 3.833.712 habitantes, ou para a realidade da região metropolitana da Grande Vitória, círculo de ação imediata da Universidade e que conta com quase 60% da população capixaba. Vamos considerar o número aproximado de vagas ofertadas por ano e por curso para cada 100 mil habitantes no ES e na Grande Vitória (GV):
- Design: 1,56 (ES) e 2,60 (GV) / 100mil hab.
- Psicologia: 1,56 (ES) e 2,60 (GV) / 100mil hab.
- Medicina: 2,08 (ES) e 3,48 (GV) / 100mil hab.
Parece pouco, muito pouco. É claro que não deveríamos considerar a população total nestes cálculos, e sim os jovens em idade universitária, que concluíram o ensino médio e poderiam ingressar em uma das carreiras de nível superior. Por outro lado, não é incomum o ingresso tardio em alguns cursos, principalmente nos mais concorridos. Dados que levantei há cerca de cinco anos, para os Incendiários, indicavam que apenas um (1) em cada cinco (5) jovens brasileiros que concluíam o ensino médio acessavam o nível superior.
Como é a situação no Uruguai? O censo 2023 projetou que o país tem 3.444.263 habitantes, números próximos ao do ES, enquanto a capital Montevidéu concentra cerca 50% da população uruguaia. Guardadas as devidas diferenças de expectativas em relação ao papel da Udelar no Uruguai e em Montevidéu, e da Ufes no Brasil e na Grande Vitória, a oferta de vagas anuais em 2023 dos nossos vizinhos, por 100 mil habitantes, é chocante e transforma minha “experiência difícil” do ensino remoto em um passeio de domingo:
- Design (Comunicação Visual): 636 vagas - 18 (Uruguai) e 36 (Montevidéu) / 100mil hab.
- Psicologia: ≈ 2.000 vagas - 58 (Uruguai) e 116 (Montevidéu) / 100mil hab.
- Medicina: ≈ 5.000 vagas - 145 (Uruguai) e 262 (Montevidéu) / 100mil hab.
O site do curso de Psicologia tem a informação incrível de que “não há limite de vagas” para ingressantes. Nas palavras dos meus colegas, “quem quer cursar entra”. Não há exame de seleção para algumas carreiras (entre elas, Medicina) e há enorme especialização dos cursos superiores. Por exemplo, na Udelar existe o curso de graduação para a formação de parteiras, que no Brasil estaria integrado à Medicina ou Enfermagem e Obstetrícia, e de psicomotristas, que seria uma subárea da Psicologia.
Daquele volume impressionante de ingressantes, cerca de 1/3 conclui o curso. Escutei diversas justificativas para esta redução, que vão desde a inexistência de processo seletivo para ingressar ou mudar de graduação, passando pelo caso dos jovens que fazem apenas o primeiro ano do curso para avaliarem se pretendem continuar. O curso de Design tem situação curiosa, pois documentos da instituição sugerem que o número de concluintes é extremamente baixo, ficando em torno de 2% dos ingressantes.
Permanência
Este exército de alunos demanda políticas de permanência. A Udelar tem duas que me chamaram a atenção, sendo a primeira relacionada à alimentação e a segunda à oferta de bolsas e auxílios.
Há um centro de “bem-estar universitário”, que inclui o bandejão com preços reduzidos e até isenção em alguns casos, acompanhado de uma cantina em que estudantes pagam 50% do valor do cardápio. Passei por lá e os preços integrais estavam ótimos, considerando o custo de vida em Montevidéu. Além disso, existe um restaurante que oferece refeições saudáveis no prédio da Escola de Nutrição, mas que é um projeto da prefeitura de Montevidéu para apoiar pequenos negócios desse ramo.
O Programa de Assistência Estudantil (Proaes) da Ufes inclui gratuidade no restaurante universitário para estudantes assistidos e o valor da refeição para o restante do público é certamente mais econômico que as opções do entorno do campus. Esta foi a parte familiar das políticas de permanência.
A grande diferença está nas becas, que equivalem às nossas bolsas e auxílios. Na Ufes, os recursos são garantidos pela política nacional de assistência estudantil do Governo Federal, atendendo cerca de 5741 estudantes em 2023 com orçamento de R$ 13.787.174,43 (cerca de R$ 200 mensais por estudante). A Udelar tem o Fondo de Solidariedad, que é uma contribuição obrigatória que todos os egressos da universidade (cerca de 95 mil em 2024) pagam para financiar a permanência daqueles que estão estudando. É isso aí, quem passou pela instituição ajuda a bancar, depois de formado, a educação de quem vem depois. Entre 2015 e 2024, o “Fondo” pagou dois salários-mínimos uruguaios mensais (≈ R$ 1.740 para valores de 2024) para algo entre 7.985 e 9.320 estudantes, com pico de 9.777 contemplados em 2021.
Os problemas existem, pois o sistema é desigual: todas as carreiras contribuem da mesma forma, independentemente de sua remuneração média no mercado de trabalho, tendo como diferenciação apenas o tempo da integralização curricular ideal (mais tempo, maior a contribuição).
Carreira e sobrecarga
Meus colegas uruguaios relataram sobrecarga de trabalho e poucos incentivos à carreira. Esta frase parece fazer sentido em Montevidéu, Vitória, Buenos Aires ou Cambridge, embora a realidade na margem oriental do Rio da Prata pareça mais difícil do que no Brasil (ou ao menos na Ufes). A dedicação exclusiva (dedicación total por lá) tem encargos muito acima da minha média histórica em 15 anos de magistério superior federal. Geralmente, tenho 12h semanais de sala de aula, ou três disciplinas diferentes na graduação. Às vezes assumo uma quarta, na pós-graduação, além das orientações na graduação e mestrado.
Além das turmas enormes, observei 10 ou 12 horas de trabalho diário, com atribuições divididas entre aulas presenciais e remotas, montanhas de avaliações para corrigir, filas de alunos para orientar, participação intensiva em comissões e tarefas administrativas. Tudo isso sem que haja retribuição por titulação, que é o adicional de salário pago a quem tem título de mestre ou doutor, e a dificuldade adicional de que alguns níveis da carreira só podem ser ocupados por vacância. Um colega precisa se aposentar para você subir, e olhe lá.
Finalmente, temos o caso, impensável no Brasil, de estudantes de graduação que atuam como professores. Dependendo da vaga, eles podem fazer o concurso, assumir a atribuição de “assistente” e ministrar disciplinas. Lembra a “escadinha” dos EUA, onde temos teaching assistants (TAs) cobrindo a maior parte das aulas, mas geralmente são estudantes de pós-graduação. No Uruguai, ao menos nas graduações em Psicologia, exige-se que estejam na parte avançada de sua formação ou que não estejam graduados há muito tempo (3-5 anos).
Pós-graduação
A falta de incentivos financeiros para a titulação poderia tornar a pós-graduação pouco atrativa para os docentes uruguaios. O fato é que muitas colegas buscaram seus doutorados no Brasi, outros foram para a Europa, especialmente Espanha. Mesmo com a falta de recompensas, a Udelar oferece mais de 300 programas de pós-graduação, principalmente nas áreas de saúde e tecnologia. Em comparação, a Ufes oferece 64 cursos stricto sensu (mestrados e doutorados) e 12 especializações.
Clima e infraestrutura
Conheci apenas o prédio “polivalente” do Parque Batalle, em que funciona a Escuela de Nutrición. A obra é recente, então minha avaliação positiva pode estar contaminada pela novidade. Por outro lado, eu trabalho em um prédio da década de 1950, com manutenção quase nula e em que a luta por espaços é constante. Cada um de nós ocupa um espaço, melhora sua estrutura por esforços quase sempre individuais e o defende com unhas e dentes.
No Parque Batalle, tudo me pareceu de fato multifuncional e compartilhado, com poucos espaços demarcados para pessoas ou cursos (alguns cargos, em contrapartida, são quase vitalícios). Há uma grande tela no saguão do prédio, em que estão projetadas as ocupações diárias das salas, auditórios e laboratórios. Reservamos salas para fazer reuniões, para conduzir o curso e até para almoçar. Todos os seis andares do prédio têm copas compartilhadas, banheiros sem distinção de gênero, salas de reunião envidraçadas (bem coworking) e uma baita vista para o Estádio Centenário.
Minhas colegas de Udelar têm suas baias em longas mesas compartilhadas em andares funcionais. Todos trabalham juntos e, em caso de reuniões específicas, pode-se reservar as salas de reunião que ficam próximas às mesas.
Futuro
Aceitei o convite para atuar como pesquisador colaborador do Núcleo Interdisciplinario Alimentación y Bienestar. Fizemos a primeira reunião do projeto de pesquisa piloto hoje (13/09) e estou animado com a oportunidade. A Ufes já tem acordo de cooperação assinado com a Udelar, de modo que potenciais intercâmbios de estudantes e docentes entre as duas instituições não parece possibilidade remota. Haja mate para o calorão capixaba!