arquivo

e-mail para hugo.santanna@ufes.br instagram @psicologiamatematica twitter @hugocristo youtube github hugocristo modeling commons (netlogo)
06/02/2024

YES, BUT

O perfil do Instagram @_yes_but publica ilustrações que exploram dois aspectos de uma mesma situação. O quadro da esquerda, YES, apresenta literalmente de tudo que conhecemos deste mundo – this says a lot about our society, informa a descrição do perfil. O quadro da direita, BUT, é uma ponderação sobre o primeiro e o barato é a possibilidade de pensar (mais precisamente, jogar na nossa cara) ambos aspectos simultaneamente: a situação e seus dilemas.

A publicação de @_yes_but (09/03/2023)

Não sei se minha descrição fez justiça aos esforços do criador do conteúdo, de modo que me parece respeitoso enfatizar o tom crítico das publicações. A maioria delas evidencia nossos dilemas, contradições, hipocrisias, dificuldades e incômodos, todos persistentes, a despeito de sua recorrente constatação. Uma daquelas publicações circulou pelos perfis de conhecidos nas últimas semanas, abordando a diferença de atenção que nossa sociedade dá a “pessoas educadas” e a influenciadores.

Na minha leitura, a “pessoa educada” da esquerda é o estereótipo do professor ou pesquisador, dados os níveis de conhecimento em astronomia, matemática, física e biologia, além da experiência profissional (ademais gênero, etnia, idade e vestimentas, claro). No quadro da direita, o influenciador não menos estereotipado aparece com parcos conhecimentos naquelas áreas acadêmicas, salvo pelo domínio de TikTok, única debilidade do professor. A diferença na atenção que nossa sociedade presta aos dois é representada pela quantidade de microfones à disposição de cada um.

É isso mesmo. Mas é isso mesmo?

Assumindo que as outras publicações do perfil @_yes_but são severamente irritantes e tocam em temas reais (algumas favoritas: 1,2 e 3), parece que esta trata da frequente crítica às redes sociais, aos influenciadores, ao consumo de conteúdos rasos em pílulas de poucos segundos, entre as várias características do buraco midiático em que nos enfiamos.

Mas é isso mesmo? Insisto na pergunta para entender se a situação da pessoa no quadro da esquerda é efetivamente problemática. A condição nefasta do influenciador é um dos poucos consensos em todas as polarizações da galáxia, então vamos ao que interessa.

No G1: Resultado brasileiro no Pisa 2022 (05/12/2023)

Em dezembro de 2023, saiu a notícia de que os estudantes brasileiros conquistaram (?) outra posição na lanterna do desempenho em matemática, leitura e ciências no Pisa. Foi uma “queda para cima”, pois houve avanços de 2018 para 2022, embora o tratamento dado pela imprensa endossa o copo meio vazio da educação brasileira. Esses resultados são a mortadela do pão francês servido no protesto contra os influenciadores, já que um país que prefere TikTok a física e matemática está condenado ao fracasso. Se o conhecimento científico interessasse tanto quanto memes de gatos, o Brasil seria outro.

Mas é isso mesmo?

Observo a confusão respeitável entre as esferas da vida nessa crítica, causada (mais uma vez) pelo bom e velho capitalismo paramentado pela economia da atenção. Vamos supor, pela possibilidade de construir o argumento, que o professor e o influenciador possuem as mesmas habilidades de comunicação. Se você passou 15 minutos em qualquer sala de aula na vida, sabe que estou sendo muito generoso.

Nesse mundo ideal, em que não haveria dificuldades para envolver a audiência e mantê-la interessada, teríamos não obstante duas formas de atuar radicalmente opostas. O professor é um trabalhador, quase sempre pouco valorizado e com jornada múltipla (múltipla ao infinito, se for mulher), que passa parte considerável do seu tempo interagindo com estudantes em contextos específicos (e quase nunca voluntários) de ensino-aprendizagem. A cada bloco de mais ou menos 50 minutos de aula, professores precisam dar conta de apresentar seus recortes de ementas pautadas por diretrizes curriculares definidas de cima para baixo. É quase uma gincana.

As oportunidades de avaliação da empreitada didática e do sucesso de seus esforços são pobres e deslocadas no tempo. A participação ativa da audiência durante a exposição pode não se repetir nas avaliações posteriores que, cabe ressaltar, também são afetadas por tudo aquilo que aconteceu antes e depois daquela aula. A situação é tão difícil de prever que comporta tanto os casos (geniais) dos estudantes dispersos e dorminhocos que se saem muito bem, quanto os superatentos e participativos que aparentemente entendem tudo ao contrário. Em tese, a remuneração não deveria variar em função dos sucessos e fracassos dos alunos. Em tese.

Ainda é preciso incluir o conteúdo do empreendimento, que pode complicar bastante as dificuldades formais citadas. Professores são especialistas, ao menos por opção. Pelas pressões do trabalho, muitas vezes são obrigados a sentar em mais cadeiras do que gostariam. YES, professor de matemática BUT orientador de projeto de vida no contraturno. YES, aprovado em concurso para lecionar X BUT vai cobrir Y e Z pela falta de corpo docente.

Se tiver sorte e puder lecionar aquilo que estudou durante anos, terá algumas horas semanais, por alguns meses, para criar condições para que suas turmas se relacionem com aqueles conhecimentos. Dividirá espaço, esforços e carga horária com colegas especializados em outros temas e com o restante da vida dos estudantes. Nunca é demais lembrar que o tempo de estudo é parte da vida, não o inverso, e o mesmo vale para o professor. Seu expediente deveria terminar quando deixa a instituição. Deveria.

O influenciador habita outra galáxia, na forma e no conteúdo. Sua vida, como sugerem os relatos, é o próprio mecanismo que constitui sua audiência. Aquilo que faz, pensa e opina, todos os dias e o dia todo, é o seu trabalho. As interações do influenciador com aqueles que decidiram voluntariamente escutar o que ele tem a dizer podem ser de todo tipo, inclusive inexistentes. Há seguidores que comentam e curtem freneticamente, ao mesmo tempo em que há outros silenciosos, que dispensam a interação.

Na Folha: O trabalho sem fim do emprecariado (22/07/2023)

A avaliação da pertinência dos esforços de construção e manutenção da audiência pelo influenciador é trivial: engajamento é uma medida dependente do número de seguidores e das interações possíveis (p.ex., curtidas e comentários). Sua especialidade é a pauta do dia: fala-se do que quiser e sobre tudo que for atual, pelo tempo suficiente para entreter a audiência e afagar o algoritmo, com a profundidade de quem pode mudar de assunto na sequência. Não divide espaço com os colegas, mas disputa tempo de tela, com a vantagem de que a captura da audiência pelo maior período possível é o objetivo central das plataformas. E quanto mais gente capturada e engajada na base de seguidores, melhores são as possibilidades de remuneração.

Como esses dois mundos podem ser comparáveis? Para que professores tenham o mesmo alcance que influenciadores, a docência precisa invadir as outras esferas da vida e deixar de ser um trabalho. Os conteúdos de sala de aula, fora dela, precisam ser transformados em “entretenimento”, que:

  1. Requer audiências dispostas a consumirem matemática, física, astronomia e biologia como consomem memes de gatos;
  2. Demanda a compressão e redução da complexidade, transformando os blocos de 50 minutos em colheradas de 30 segundos;
  3. Exige energia para fazer no horário de descanso aquilo que faz no horário de trabalho;
  4. Explora todas as habilidades comunicativas (!) do professor para manter sua audiência interessada e engajada.

O desafio da integração com a pauta do dia me parece o maior de todos. Conheço professores que conseguem a façanha de levar sua disciplina para todos os cantos da vida, integrando sem atritos o cotidiano e o conteúdo programático. Quase sempre, estes colegas são os raros exemplares híbridos do professor-influenciador, que conseguem abordar os temas em voga sem esquecer (ou violentar) suas especialidades. Como estes não são a regra, as redes estão inundadas de professores que se propõem a falar sobre tudo e acabam não dizendo nada.

Me diverte e me assombra o fato de que os influenciadores são, em maior ou menor grau, professores de alguma coisa. Vendem cursos, palestras, livros, listas de cinco, sete ou dez coisas que você precisa saber. É como se as outras instâncias educativas da vida não fossem suficientes e houvesse uma sede incontrolável por mais conhecimento. YES, BUT a dosagem precisa ser mínima, com sabor tutti-frutti e coreografia para engolir.

Um último aspecto da incomensurabilidade das presenças públicas de professores e influenciadores concerne à densidade da especialização. Mesmo entre acadêmicos, enfrento dificuldades para conquistar um único microfone para falar dos assuntos que me interessam. Entendo perfeitamente que as pessoas queiram saber sobre tudo, menos sobre psicologia matemática, enquanto estão anestesiadas pelas linhas do tempo. Os professores que acumulam as funções de pesquisadores têm ainda mais dificuldades para transformar suas horas de discussão técnica em cápsulas de entretenimento. Os microfones morrerão de tédio a maior parte do tempo e é bom que seja assim. Nem tudo deve entreter, tampouco precisa ser comprimido e desidratado para consumo de massa. Há momentos em que um único microfone bastaria, aquele da audiência correta e interessada, que pode ficar ligado pelo tempo necessário para a abordagem adequada dos assuntos.

O efeito mais nefasto das redes sociais e da imposição do modus operandi do influenciador ao professor é homogeneização do discurso. Os vídeos são iguais, as locuções têm a mesma cadência, as trilhas sonoras se restringem ao que é viral. Isso pode não ser problema para influenciadores (exceto pela mesmice), mas diferentes disciplinas utilizam modalidades expositivas distintas para valorizar as características próprias das linguagens que empregam para representar seus conceitos e desenvolver seus argumentos. Se tudo é apresentado como “cinco coisas que você precisa saber”, não há muitas alternativas para as disciplinas que precisam de vinte.

O empobrecimento da comunicação já se observa na presença das instituições de ensino nas redes. Se, por exemplo, uma universidade precisa replicar memes da semana para capturar a atenção dos estudantes, imagine o desafio dos professores nos blocos de 50 minutos durante as aulas. O indivíduo maturado nas dancinhas relâmpago, mais cedo ou mais tarde, precisará enfrentar textos longos e densos, editais e outras chatices áridas da vida adulta.

A possibilidade de coexistência das duas presenças midiáticas, a do microfone solitário e da coletiva concorrida, pode ser o caminho para evitar (ou ao menos retardar) a pasteurização dos processos comunicativos.

Talvez, aquele meme em especial deveria ser um duplo YES, cada um no seu quadrado.

Índice do blog ou falar comigo sobre este texto