Como sabemos que ensinamos o que é necessário?
Resposta rápida: não sabemos.
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Podemos ter boa vontade, curiosidade sobre o que acontece fora dos muros do campus, manter vínculos frequentes com empresas, governos e entidades de classe, de modo que os temas relevantes para a sociedade contaminem as discussões de sala de aula. Essas ações parecem ajudar a identificar o que é necessário do ponto de vista da atuação profissional dos nossos futuros egressos. Ainda assim, não bastam. Há disputas de força que definem o que concretamente o que será feito em sala de aula, sendo a primeira delas puramente burocrática e a segunda relacionada ao corpo docente.
Depois da pandemia, escuto cada vez mais estudantes ingressantes me questionando por que tal disciplina está na grade do curso, incluindo a minha. Parece haver um “descolamento” entre expectativa e realidade, quase sempre entendido como falta de conhecimento ou arrogância do estudante – mal entrou e já está questionando? Pode não ser bem esse o problema e considero a pergunta, ainda que feita de forma atrapalhada, legítima.
Comecemos pela burocracia: cursos superiores são governados por projetos pedagógicos que definem, entre outros aspectos do funcionamento da formação, o perfil do egresso e a organização curricular. O perfil do egresso é a idealização do resultado do trajeto formativo, um estereótipo das habilidades e competências que o “graduando médio” deveria ter, ao final do curso. A organização curricular, tendo o perfil do egresso como norte, oferece uma série de disciplinas que trabalham aspectos daquelas habilidades e competências. Atividades extracurriculares (p.ex., pesquisa, extensão, estágios) completam o pacote, contribuindo de diversas formas para que os estudantes orbitem em torno daquele perfil desejado para os futuros profissionais.
Já o corpo docente dialoga com o perfil do egresso e a organização curricular diretamente, pois realiza a oferta de disciplinas, de atividades extensionistas, de pesquisa, de supervisão de estágios, para citar as mais presentes. Além disso, o corpo docente pode funcionar como “espelho” daquilo que o estudante espera se tornar ou pode apresentar caminhos de atuação profissional, a partir das trajetórias dos professores que o integram.
Saber se ensinamos o que é necessário esbarra, no mínimo, nas seguintes dificuldades:
- Entender se o perfil do egresso é compatível e coerente com as expectativas da sociedade. Em termos práticos, podemos nos perguntar se o rol de disciplinas, com suas respectivas ementas e conteúdos programáticos, ofertadas como são, na ordem definida pelo projeto pedagógico, realizam a promessa do “graduando médio” descrito no perfil.
- Tendo o perfil e o currículo no horizonte, investir em professores, infraestrutura física e organizacional capazes de colocar o plano em andamento. De nada adianta um currículo incrível sem docentes para ministrá-lo e sem corpo técnico para apoiá-lo, ou inúmeras horas de atividades extraclasse sem espaços laboratoriais adequados e projetos interessantes para envolver estudantes.
- Assumindo que há compatibilidade entre o egresso idealizado pelos cursos e o profissional esperado pela sociedade, e que a instituição teve condições de materializar a formação planejada (premissa da dificuldade nº2), podemos nos indagar se a formação dos graduados efetivamente cumpriu seu papel. Este é o desafio do acompanhamento dos egressos, tarefa difícil e essencial, que nos ajudaria a responder parcialmente se o que ensinamos era necessário.
O ingressante que questionou a necessidade da minha disciplina não está me desafiando, mas tentando comparar o perfil do egresso (talvez impreciso) que ele tinha em vista quando selecionou aquele curso e o que encontrou quando frequentou minha primeira aula. Não há nada de errado nesta comparação, por mais frágil e desinformada que seja, pois um possível contratante ou interlocutor daquele estudante tampouco conhecerá as nuances da formação para tomar decisões.
Toda profissão tem imagens em circulação que estabelecem as expectativas das pessoas quanto ao que um profissional daquela área deve (ou pode) fazer. Parte importante da resposta sobre a necessidade do que ensinamos dialoga com essas imagens imprecisas, seja porque a formação deveria contribuir para reduzir a imprecisão, seja porque a pertinência social de um curso não pode ser definida apenas dos muros da universidade para dentro. Por um lado, os profissionais graduados participarão do debate público e poderão qualificar a imagem por meio de sua atuação. Por outro, é pelo exercício das atividades profissionais que muitos desafios da formação são identificados e retroalimentam os cursos, às vezes contaminando discussões em disciplinas, gerando eventos ou pesquisas que debatem os temas; outras vezes, por reformas curriculares concretas, que tentam atualizar o curso conforme as demandas da sociedade.
A velocidade das mudanças atuais não ajuda. É praticamente impossível dar conta das três dificuldades que mencionei acima (compatibilidade e coerência do perfil idealizado para o egresso, realização do processo de formação naqueles termos, acompanhamento e avaliação para ajustar eventuais desvios) com a sucessão de rupturas que enfrentamos. Não por acaso, os questionamentos dos ingressantes aumentaram. Fica cada vez mais evidente que se não conseguimos ensinar tudo o que é necessário, menos ainda conseguimos identificar o que seria tudo.
Alternativas para o dilema aparecem com soluções de mais alto nível, tais como “aprender a aprender” e desenvolver “soft skills”. Se a primeira solução soa como argumento de palestrante profissional, que fala sobre tudo e não aprofunda em nada, a segunda serve apenas para adiar o problema ou deslocá-lo para a categoria errada – já falei sobre isso na série sobre inteligência artificial (IA). Por mais que essas alternativas sejam positivas para o futuro profissional dos estudantes, há núcleos relativamente estáveis de habilidades e competências dos cursos superiores que não serão dominados com autodidatismo e capacidade de relacionamento.
A disseminação de ferramentas de IA atrapalha mais do que ajuda, uma vez que elas ocupam a condição dupla de problema e de solução. Todos estão com medo de uma coisa que não dominam e a saída é aprender essa coisa? Cada área será afetada pela IA (ou pelos computadores, como ocorreu nos anos 1990-2000, ou pelos celulares nos 2010 etc.) de formas distintas e a apropriação pelos profissionais será modulada pelas particularidades daquela atuação – ora vejam só, pela tal imagem que a sociedade tem do profissional e que deveria afetar o perfil do egresso, a organização curricular e tudo mais.
Participei de discussões promovidas pela reitoria da Ufes, no final do ano passado, para pensar o que fazer com a IA em toda a instituição. A tarefa parece reforçar o entendimento da condição dupla que critiquei, o que é verdade, ao menos em parte. Minha proposta foi a oferta de disciplinas transversais de IA por toda a universidade, criação de espaços laboratoriais de alto desempenho no nível dos centros de ensino, constituição de comitês para a elaboração de políticas institucionais de uso de dados, entre outras iniciativas que impactam o ingresso e a permanência estudantil. Estamos falando de IA porque o assunto está na agenda do dia, mas poderíamos adotar encaminhamentos semelhantes para qualquer ruptura sociotécnica mais ampla. Continuamos a enfrentar o problema de entender se o que ensinamos é necessário.
Para considerar a nova demanda social X em seus cursos, professores precisarão de oportunidades de formação continuada e tempo para debater, em suas respectivas áreas e tendo o perfil do egresso vigente como alvo, o que deve ser mudado para lidar com as novidades. As propostas precisam ser situadas, dialogando com o que acontece fora da instituição, levando-se em consideração os arranjos produtivos locais.
É sempre bom lembrar que soluções genéricas, baseadas puramente na oferta de acesso, não resolvem. As dezenas de laboratórios de informática criados em todos os níveis da educação nos anos 1990 são a prova de que não basta apresentar a novidade. Apropriar-se de tecnologias é muito diferente de ter acesso a elas de modo desinformado e descontextualizado. O futuro profissional precisa aprender a pensar em um mundo diferente, em que aquelas tecnologias fazem parte dos problemas e de suas soluções.
A sociedade tampouco consegue explicitar suas necessidades facilmente. Interesses de empresas, governos e entidades da sociedade civil podem ser difusos, locais e imediatos, enquanto o processo formativo é um investimento de médio e longo prazo, relativamente rígido e programado. Se as reclamações sobre a precariedade ou insuficiência da formação são recorrentes, por parte das empresas, professores muitas vezes invocam argumentos de que o “o mercado é raso e não aproveita o que ensinamos” e que “a universidade forma cidadãos, não mão de obra para o mercado”. Mal consigo dialogar com estes pontos, pois fortalecem as barreiras que estou tentando derrubar. Universidade e entorno estão mutuamente implicados na resposta daquilo que seria necessário ensinar e, enquanto persistir a falta de diálogo, precisaremos fazer compensações em ambos os lados, para desperdício de tempo e recursos de todos.
Escrevo essas reflexões enquanto estou elaborando um seminário curto, de 15 horas, para abordar IA na pós-graduação em Psicologia, em paralelo à reformulação da minha disciplina Design Computacional (60 horas), ministrada para os ingressantes do Curso de Design – aqueles que questionam cada vez mais o que ensinamos. Para os mestrandos e doutorandos, optei por atacar o problema da forma mais situada possível, já que a discussão sobre a função teórica da IA na Psicologia é amplamente discutida. Obviamente, precisamos experimentar as ferramentas de produtividade (p.ex., escrita, revisão e tradução de texto, análise de dados, apoio à seleção do que consultar na literatura), mas a Psicologia tem décadas de questões próprias na interação com IA, com potencial para gerar novas abordagens para problemas de pesquisa, ademais das controvérsias causadas pela substituição do psicólogo por agentes de terapia artificiais.
No caso do Curso de Design, o turbilhão da substituição é mais forte e, como eu trabalho os efeitos do pensamento computacional sobre as práticas de projeto, acho que produtividade e capacidades projetuais acabam caminhando juntas. Desejo ampliar a fluência deles com as ferramentas de autoria baseadas em IA, enfrentando o dilema de que produtividade em excesso (leia-se trivialização das entregas) ataca a relevância da profissão que estamos tentando defender. Permanece a questão de que designers se tornaram meros usuários de tecnologias, enquanto poderiam ser autores. Esta perspectiva faz ainda mais sentido hoje, quando a IA generativa automatiza e pasteuriza tudo.
Em ambos os casos, saber se a opção que farei é pertinente depende de dialogar com o entorno. Reunirei os achados das conversas que pretendo fazer com atores das respectivas áreas – empresas, entidades de classe, formadores de opinião – para entender se bastará abordar os temas pontualmente, nas minhas disciplinas, ou se já estamos (novamente) atrasados para reformular mais drasticamente os perfis dos egressos e as estruturas curriculares. Se quiser conversar sobre isso, escreva para hugo.santanna@ufes.br.
Pretendo compartilhar os resultados por aqui e, possivelmente, nos vídeos que tenho feito enquanto estou no caminho para o trabalho.
Como sabemos que ensinamos o que é necessário? Resposta longa: não sabemos.