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24/01/2024

Soft skills não salvarão seu emprego da IA – Parte 1

Nos últimos meses de 2021, quando ChatGPT e inteligências artificiais (IAs) generativas1 similares foram disponibilizadas para os usuários finais, começaram a circular uma série de especulações sobre os potenciais impactos daquelas tecnologias no mundo do trabalho.

18/11/2023: Lançamento da API do GPT-3 (OpenAI)

De um lado, os pessimistas disseram que as rupturas produzirão uma legião de desempregados. Do outro, os otimistas argumentaram que aquelas inovações são meras ferramentas e que o ser humano continua indispensável, desde que saiba tirar proveito das novidades.

Diferentes perspectivas: Forbes, G1, A Gazeta (opinião) e InfoMoney

A condicionalidade declarada, da apropriação das IAs, não é trivial, já que a alternativa desemboca na leitura do pessimismo. Ela tampouco é nova, somando-se ao rol enorme e crescente de habilidades tecnológicas que todos devem dominar para se manterem competitivos e relevantes no mercado de trabalho.

Aquilo que foi dito sobre aprender sobre uma inovação “X” que seria a bola da vez, tal como a usar computadores em todas as áreas, depois aprender a programar, a ocupar as mídias sociais ou a explorar o potencial de big data, vale parcialmente para as IAs: precisamos ensinar X em todos os níveis da educação, as empresas precisam incorporar X à sua operação, os governos precisam de X para aumentar sua eficiência.

Repercussão da iniciativa Hour of Code (2014): The New York Times e Indie Gogo. A proposta consiste em oferecer oportunidades de aprendizagem de princípios da ciência da computação para "todos os estudantes de todas as escolas".

Afirmo que vale parcialmente, pois o espírito do nosso tempo introduziu novos elementos ao rol de exigências, aparentemente descolados da corrida armamentista tecnológica. Mais precisamente, ao elencar as habilidades desejadas para o trabalhador da terceira década do século XXI, formadores de opinião defendem que haveria algumas mais resistentes, ou adaptadas, aos impactos nocivos das disrupções tecnológicas. Segundo esta linha de raciocínio, o pessimismo que citei seria infundado, uma vez que saber programar, explorar produtivamente a presença nas mídias sociais, analisar conjuntos imensos de dados ou interagir de modo eficiente com as IAs seriam habilidades necessárias porém insuficientes no futuro.

Todo esse pacote (não trivial, repito) de habilidades ou skills técnicas, geralmente denominadas de “duras” ou hard, precisaria ser acompanhado por outras “leves” ou soft. Estas sim, curiosamente, manteriam as portas das oportunidades de trabalho abertas a seus portadores. Fala-se em empatia, capacidade de comunicação e de relacionamento, criatividade, liderança, pensamento crítico e “pensar fora da caixa”, para apontar os temas que mais observo.

O cenário que descrevi não está restrito às áreas tecnológicas. Pode ser que a humanização do trabalho do engenheiro tenha se beneficiado substancialmente pela valorização de habilidades leves, mas me parece que as humanidades fizeram o uso mais intensivo do discurso da necessidade insuficiente das habilidades duras.

Por exemplo, a Faculdade de Direito de Vitória (FDV), conhecida instituição privada capixaba, utiliza a tensão entre habilidades leves e duras como resposta à chegada das IAs. Em outro contexto, a jornalista Christiane Pelajo defendeu as habilidades leves como “diferencial para sobreviver à IA”. Uma busca rápida por soft skills nos principais buscadores nos leva a uma série de publicações no LinkedIn e sites especializados que evangelizam sobre o quanto habilidades leves seriam o salvo-conduto para cruzar a terra arrasada que será gerada pela IA.

Publicação do curso de Direito da FDV em sua conta do Instagram @direitofdv (09/10/2023) e matéria de A Gazeta (13/01/2024). O texto que acompanha a publicação da FDV diz: "O Direito FDV é diferente porque trabalha o desenvolvimento de habilidades criativas e relacionais que tecnologias não podem reproduzir. Uma ideia inovadora sem precedentes, uma escuta empática que identifica e age no foco emocional de um conflito são soft skills que diferenciam os melhores profissionais – e que tecnologia alguma pode codificar."

Na minha opinião, não há salvo-conduto por duas razões. A primeira decorre da própria dinâmica do mercado de trabalho em economias capitalistas, que não por coincidência é uma das causas das corridas anteriores para se aprender a programar, estar nas mídias sociais e explorar big data. A segunda está relacionada à manifestação atual das IAs para o público leigo, que a despeito de ser transitória, informa o imaginário social e afeta as previsões dos formadores de opinião. Desenvolverei as duas razões em textos separados, para não saturar a atenção nestes tempos de conteúdo em pílulas de 30 segundos.

A seguir:

  1. A luta pelo diferencial no mercado de trabalho
  2. ChatGPT não é o seu nêmesis

Notas

  1. Para evitar a fadiga, estou rotulando de “IA” todo o conjunto de modelos de linguagem com milhares de parâmetros (Large Language Models – LLMs), ainda que o termo seja impreciso. Marcar essa diferença parece exagero, mas muitas previsões equivocadas que comento neste texto decorrem da falta de distinção clara entre LLMs e outras classes de IA existentes e até mais promissoras (voltar).

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