Soft skills não salvarão seu emprego da IA – Parte 2
Esta publicação é a segunda parte de uma série. Leia a primeira parte.
A luta pelo diferencial no mercado de trabalho
Entender “o que o mercado quer” é uma questão é complexa e merece ser discutida com pompa e circunstância em outros momentos, mas adotarei um atalho repassando as dicas [1 e 2] do amigo Fábio Caparica sobre os “empregos fantasmas”.
O setor de tecnologia reclama aos quatro ventos que faltam engenheiros e o déficit estaria na casa das milhares de vagas abertas. Reivindicam respostas de governos e sociedades nos termos de mais investimentos em formação técnica, incentivos, subsídios etc.
Além das consequências mais imediatas do déficit, isto é, o aquecimento do setor de formação desses profissionais, das universidades aos cursos de atualização massivos disponíveis na Web, passando pelas palestras e conferências que controlam para onde o vento sopra, o déficit mantém todo técnico convencido do valor do seu trabalho. A proteção do diferencial decorrente no investimento na formação técnica – as habilidades “duras” – é uma velha conhecida da classe média.
Especialmente, embora não exclusivamente no Brasil, o acesso a boas escolas (privadas) e ensino superior (público) já foi objetivo estratégico dos herdeiros da classe média. Ter curso superior concluído em universidades federais e estaduais foi, há algumas décadas, investimento seguro para o futuro profissional dos filhos. A concorrência de ingresso era brutal, de modo que outro investimento na educação básica e cursinhos preparatórios privados era necessário para aumentar as chances de aprovação no funil do “vestibular”.
Quatro mudanças contextuais engendradas a partir dos dois governos Lula (2003-2006 e 2007-2010) e do primeiro governo Dilma (2011-2014) alteraram essa estratégia da classe média:
- A ampliação do número de universidades e criação da rede de institutos federais;
- O sistema de reserva de vagas por cotas sociais;
- A explosão de cursos superiores e técnicos em instituições privadas a partir de programas como Prouni e Fies, no primeiro momento, seguida da crise no setor e reorganização dos grandes conglomerados educacionais (ver abaixo);
- A criação do Sistema de Seleção Unificado (SiSU), que permitiu a ocupação de vagas em toda a rede federal com a nota do Enem.
Assim, obter um diploma em cursos superiores, inclusive nos mais prestigiados, não é mais uma exclusividade da classe média. Ou seja, o acesso a hard skills deixa de ser restrito a uns poucos, ainda que o déficit de vagas entre os jovens em idade universitária seja estrondoso (escrevi sobre isso antes, no Incendiários).
Um dos desdobramentos dessas mudanças foi que distância entre o diferencial dos filhos da classe média e o restante da população educada diminuiu. As posições mais atraentes no mercado de trabalho continuam concentradas no primeiro grupo, embora menos como consequência posse das habilidades duras em si. Assim, redes de contatos e relacionamentos, privilégios de acesso a bens culturais mais caros (p.ex., fluência em idiomas estrangeiros, estudos complementares no país e exterior) foram destacados, além de outro conjunto de bens “intangíveis” cujo valor de mercado depende da avaliação mais subjetiva do contratante – estas são as habilidades leves ou soft skills.
Pessoalmente, leio a supervalorização das “qualidades humanas” do trabalho como uma contradição genial. O mercado de trabalho segue a lógica meritocrática na qual as conquistas individuais e habilidades exclusivas dão o tom das interações, ademais de estar marcado por posicionamentos cada vez menos críticos dos empresários em relação às contradições do país ou do próprio serviço prestado. A empatia valorizada pelo contratante, ao buscar um trabalhador, pode não estar entre suas próprias habilidades quando se negocia salários, benefícios e condições objetivas de trabalho. Um profissional com pensamento crítico, inclusive sobre as decisões de seus superiores, pode não durar muito. Contudo, o mercado está mudando para melhor, dizem os otimistas das habilidades leves.
Mas em que medida o diploma deixou de ser suficiente? Convenhamos, o diferencial nunca foi sobre o diploma de nível superior. A diplomação do profissional liberal é apenas parte do problema de montar uma rede de clientes, fornecedores e parceiros necessários à oferta de serviços e construção de reputação. As condições de partida para a construção dessa rede têm um peso enorme e uma breve descrição do caso dos designers pode tornar a dificuldade mais evidente.
Os primeiros trabalhos profissionais do estudante de design, aqueles feitos fora de sala de aula para clientes reais, geralmente ocorrem por proximidade ou oportunidade. No primeiro caso, ter um parente ou vizinho empresário de pequeno e médio porte ajuda, pois este perfil de negócio tem capacidade de investimento e demandas concretas de design – identidades visuais, fachadas, embalagens, sites e afins. Quanto melhor a rede de contatos, mais espaço para o estudante colocar em prática o que aprendeu, acumular portfólio e fazer novos relacionamentos para trabalhos futuros.
Para o estudante sem esta rede preexistente, o caminho é o das oportunidades: nos estágios, nos trabalhos voluntários e outras situações com menos visibilidade e, possivelmente, menos capacidade de prospectar e conquistar clientes. Ainda assim, o trabalho aparece e a rede é não obstante construída, penetrando, aos poucos, outros grupos e espaços na comunidade. Penso que os demais profissionais liberais clássicos, como médicos, advogados, dentistas, arquitetos e contadores enfrentam desafios similares na estruturação de suas respectivas redes.
Nas demais carreiras de nível superior, exceto aquelas acessadas por meio de concurso público, os postos de trabalho são ainda mais dependentes das redes. Não é por acaso que programas de MBA são importantes no fortalecimento dos relacionamentos dos executivos e que muitas empresas de médio e grande porte selecionam candidatos por indicação dos quadros existentes ou por meio de processos seletivos que remanejam funcionários antes de buscarem novas pessoas.
A mensagem da primeira razão da inexistência de salvos-condutos para a IA é que a dinâmica do mercado de trabalho segue os interesses econômicos de quem contrata. As habilidades desejadas, duras ou leves, se originam em expectativas cada vez mais difíceis de se satisfazer, precisamente para que o estoque de profissionais seja muitas vezes maior do que a capacidade de contratação das empresas. O esvaziamento do valor de um diploma de nível técnico ou superior, e das habilidades duras vinculadas, mantém salários baixos e contratos de trabalho flexíveis o bastante para se evitar encargos. Para preencher a vaga da vez, não basta ser programador, tem que ser empático, criativo e crítico. E se você for tudo isso e não souber programar, também não serve. Como ninguém serve, podemos pagar menos e criar a sensação de que todos podem ser facilmente substituídos.
A chegada de IA explicita o que há de mais difícil para o trabalhador que busca colocação no mercado, e habilidade leve alguma conseguirá poupá-lo. Se o empresariado puder substituir um trabalhador por uma tecnologia, ele será substituído. Os casos dos setores bancário e de transportes, não só durante a pandemia, mas acelerados por ela, nos ajudam a entender que o problema não é de uma substituição específica causada pela IA e sim uma tendência geral das economias capitalistas.
Os correntistas de bancos no Brasil testemunham a redução contínua no número de agências (5,8 mil a menos em 7 anos e 14 mil demissões), com atendimento feito por seres humanos, como também de terminais de autoatendimento, que na prática já são uma primeira etapa de substituição. As instituições delegaram para o correntista a responsabilidade de adquirir e custear os canais de atendimento que anteriormente estavam na planilha de custos dos bancos. Ter um celular conectado à internet é a condição para pagar suas próprias contas. Pode-se argumentar, e os otimistas o fazem, que ganhamos “velocidade”, “comodidade” e “segurança”. Os pessimistas nos lembram que ainda pagamos os juros mais altos do planeta, que o número de golpes e fraudes explodiu e que as taxas bancárias não reduziram no mesmo ritmo em que as instituições diminuíram seus custos operacionais.
A imprensa registra há anos que o setor de transportes públicos não vai bem e a pandemia parece ter agravado o cenário pintado pelas empresas concessionárias. Na região metropolitana da Grande Vitória, a pandemia foi o episódio que faltava para consolidar a remoção dos trocadores dos coletivos. Mais uma vez, comodidade, velocidade e segurança, combinados ao discurso dos prejuízos históricos acumulados e à exigência de distanciamento social, substituíram profissionais por sistemas informatizados, sem chance de retorno. Nada muito sofisticado ou “inteligente”, pois trata-se de sistema baseado em cartões recarregáveis e terminais no interior dos ônibus, tecnologia disponível há décadas.
Para bancários e trocadores, habilidades leves não foram diferenciais. O argumento do remanejamento existe e de fato ocorreram mudanças de área, mas definitivamente não há novos postos para todos os trabalhadores substituídos por uma tecnologia, por mais empáticos e criativos que sejam. Escuta-se, nesses casos, a alegação de que tais postos de trabalho não são especializados, que seriam mais facilmente substituídos por tecnologias do que, digamos, um designer.
Meu ponto é que as demandas econômicas guiam a substituição, não o desenvolvimento tecnológico em si mesmo. Se houver interesse econômico pela automação de determinada área profissional, ela ocorrerá. A capacidade de resistir à substituição é política e, novamente, dependente das redes que estes profissionais construíram e que serão fundamentais para defender seus interesses. O caso dos médicos é exemplar: ao mesmo tempo em que se mobilizam há décadas para dificultar o aumento na oferta de cursos superiores de medicina e em defesa do ato médico (veja a cronologia do Conselho Federal de Psicologia), fizeram a telemedicina se estabelecer rapidamente, a despeito das consequências para os clientes.
O caso dos designers avança rapidamente: está em curso uma batalha pela relativização de direitos autorais do que está disponível na Web, de modo que as empresas de tecnologia possam consumir, sem custos, o trabalho criativo de designers e artistas para construir as mesmíssimas ferramentas de IA que pretendem substituí-los.
Os otimistas argumentam que as tecnologias de design generativo deixarão os profissionais com tempo livre para se concentrarem em questões estratégicas (abordei esta perspectiva em artigo de 2019), tais como gestão de marca, da experiência do usuário, de serviços e demais tarefas de alto nível. Mas quantos postos de trabalho no mercado de hoje se dedicam a essas tarefas? Sabemos que o design do dia a dia, repetitivo, mecânico e pouco estratégico não tem participação desprezível no faturamento dos serviços de design.
Muito pelo contrário, pois assim como os estudantes começam sua atuação profissional por serviços simples, em vias de serem totalmente automatizados, parte importante do cotidiano das empresas de design é baseado em tarefas já realizadas por IAs: criação de leiautes, tratamentos de imagens, editoração de páginas, vídeos e animações. É importante mencionar que uma parcela significativa dessas tarefas depende das boas e velhas habilidades duras.
Nessa futurologia, percebo dois grupos de otimistas, que preferem enxergar o copo “meio cheio” – os surfistas e os privilegiados. Surfistas sempre pegarão carona na última moda, tentando guiar aqueles que não sabem o que vai acontecer (alguém sabe?). São positivos porque sua positividade vende livros, cursos, palestras e os mantêm relevantes. Pessimistas não enchem auditórios.
Já os privilegiados são positivos porque sabem que, quando a tecnologia estiver madura, são eles que poderão dispensar seus subordinados e desempenharão as tarefas de alto nível com ajuda da IA – “curadoria” e “refinamento”, como sugeriu Paula Scher. Estas são as posições dos executivos dos bancos e dos diretores das empresas de transporte. Surpreendente seria encontrar trocadores e bancários com visões positivas da automação.
Por fim, as comparações com substituições causadas por tecnologias anteriores, como aquela mencionada pelo executivo da Adobe, são ingênuas (ou mal-intencionadas): a fotografia não acabou com a pintura, mas transformou radicalmente nossa relação com a produção e consumo de imagens. Não estamos apenas introduzindo uma nova câmera e sim substituindo a necessidade do processo de planejar, produzir e registrar imagens, independente da técnica, com soluções de empresas monopolistas como a Adobe. O tipo de relação que está sendo transformada é de outra ordem.
Habilidades leves não serão capazes de impedir a reorganização das relações de trabalho, especialmente considerando a fortuna que está sendo investida em paralelo às demissões que continuam a todo vapor.
No fundo, existe o sonho bobo do otimista, que acha que os robôs farão o trabalho pesado e todos nós passaremos o dia na praia, escrevendo poesia. Esta imagem equivocada da IA é o tema do terceiro e último texto.